INTRODUÇÃO
A
presença de nomes femininos na genealogia registrada no evangelho canônico de
Mateus é um fato incomum e surpreendente, pois nos registros genealógicos dos
livros canônicos normalmente não aparecem o nome das mulheres.
Tamar,
Raabe, Rute, Bate-Seba e Maria tiveram seus nomes incluídos nessa importante
genealogia. Todas foram fortes e venceram suas batalhas pessoais e familiares.
Todas sofreram e choraram para cumprir o seu papel de mulher e de ser humano.
Com suas vitórias, todas deixaram seus nomes marcados para sempre na história.
A
presença dessas mulheres na genealogia de Jesus não é por acaso. Qual foi o propósito
do escritor bíblico em registrar esses nomes? Por que razão ele mencionaria
essas histórias? Qual a ligação delas com o nascimento de Jesus nesse contexto
judaico-cristão na comunidade de Mateus? Nesse caso específico, qual era o
objetivo do escritor-evangelista?
Para
compreender esta surpreendente citação feminina na genealogia de Jesus a
presente pesquisa pretende seguir três pontos fundamentais: Primeiramente,
analisar o pano de fundo contextual do evangelho de Mateus. Em segundo lugar,
mostrar o significado do uso de genealogias naquele momento histórico e a sua
importância como justificativa de autoridade. Em terceiro lugar, estudar a
história de Tamar, Raabe, Rute, Bate-Seba para perceber as diferenças e
semelhanças entre cada uma delas. Assim, será possível vislumbrar algumas
respostas sobre o objetivo do escritor-evangelista ao fazer referência a cada
uma dessas mulheres.
Sobre
a situação que moldou o evangelho de Mateus, provavelmente, há mais acordo do
que sobre os demais evangelhos canônicos. Ao que parece o evangelista escreveu
a sua carta em resposta ao período de transição que se segue à revolta judaica,
em 66-73 D.C., e à transformação resultante tanto no judaísmo como no
cristianismo. Possivelmente, Mateus tenha escrito seu evangelho em alguma época
das décadas dos anos 80 e 90, para uma comunidade urbana na área da Síria.
O
propósito principal do livro é testificar que Jesus era o Messias da promessa
do primeiro testamento e que sua missão messiânica consistia em trazer o reino
de Deus até os homens.
Para
Jesus, na sociedade deveria haver lugar para todos: mulheres e homens, pobres e
ignorantes. O reino de Deus, proclamação central de Jesus, é um reino ideal no
qual não pode haver guerras nem dominação, tampouco fome e discriminação, pois
todas as vidas são preciosas aos olhos de Deus.
A GENEALOGIA E SEU
SIGNIFICADO
A
palavra genealogia deriva de duas palavras do grego genoς (raça) e logia (estudo) e
pode ser traduzida por estudo da raça humana, da origem, da descendência e das
relação entre famílias. No caso de algumas nações antigas, as genealogias se
revestiam de grande importância, pois as sociedades eram organizadas segundo as
linhagens tribais.
Na
cultura dos hebreus, as genealogias preservavam as identificações tribais e as
possessões sob forma de terras, sendo muito importante para uma cultura
nitidamente agrícola.
Os
registros genealógicos judaicos contêm informações que se estendem por um
período de mais de três mil e quinhentos anos, desde a história da criação de
Adão até o cativeiro babilônico.
Após
o cativeiro babilônico, os judeus mostraram-se extremamente cuidadosos em
preservar seus registros genealógicos. O historiador Flávio Josefo afirma que
era capaz de provar que descendia da tribo de Levi, mediante registros públicos
disponíveis. (De vita sua, par. 998). Ele também afirma que, a despeito dos
cativeiros e dispersões sofridas por Israel, as tábuas genealógicas nunca foram
negligenciadas. Durante o período de dominação romana, entretanto, houve grande
destruição desses registros genealógicos e a preservação das linhagens
tornou-se um empreendimento privado e, sem dúvida, inexato. Tanto as
genealogias públicas quanto as bíblicas, com freqüência, envolviam muitos
hiatos, alguns deles graves, pelo que consideráveis inexatidões penetram na
questão, mesmo nos tempos antigos, antes do começo do cristianismo.
Algumas
das características particulares das genealogias dos textos bíblicos podem ser
observadas em outros textos, principalmente nas listas de reis e governantes
das nações vizinhas. Alguns estudos arqueológicos têm mostrado que as
genealogias representativas, compostas de modo simétrico, eram uma prática
comum entre povos vizinhos de Israel.
Na
lista de reis sumérios Mes-Kiag-Nanna é chamado de filho de Mes-anni-padda,
mas descobertas arqueológicas têm mostrado que, na realidade, foi seu neto. Na
Babilônia, desde os tempos dos Cassitas, era prática comum o uso da palavra mâr
(filho de) fosse uada como sentido de descendente de.O rei
Tiraca (cerca de 670 A.C.) refere-se a
Sesóstris III (cerca de 1870 A.C.) como seu pai, embora o espaço de tempo de
mil e duzentos anos separassem um do outro. As genealogias árabes exibem o
mesmo tipo de fenômeno.
Dessa
forma, é evidente que o uso de genealogias é uma demonstração de autoridade e
poder, além de ser a confirmação da linhagem para reivindicação monárquica.
A
genealogia de Mateus, arranjada em grupos de quatorze nomes, mostra que o
intuito era o de ser representativa e não completa. Quando o escritor do
evangelho de Mateus inicia seu livro com essa genealogia ele está defendendo o
reinado de Jesus, através da linhagem de Davi.
Seja
como for, o ponto principal ficou demonstrado: a intenção era mostrar que Jesus
era descendente tanto de Davi como de Abraão, ficando assim evidenciado sua
reivindicação à posição messiânica.
A
genealogia é dividida em três grupos, com quatorze gerações, como afirma o
verso 17. Na verdade, porém o terceiro grupo contém somente treze nomes, e no segundo
grupo três gerações são omitidas, conforme a evidência de I Crônicas 1 a 3, que
o autor parece ter usado como fonte.
Há
um pensamento sugerido por alguns comentaristas, que a significação que o
escritor achou no número “quatorze” é que os valores numéricos das consoantes
hebraicas na palavra Davi dão como soma aquele número. Outros estudos vêem
implicações mais ocultas no uso de números pelo autor de Mateus.
Um
detalhe que chama a atenção na genealogia do evangelho de Mateus é a citação de
alguns nomes femininos.
AS MULHERES DA
GENEALOGIA DE JESUS
TAMAR
A
primeira mulher citada na genealogia de Jesus é Tamar. A história de Tamar está
registrada no livro de Gênesis 38:1-30.
Tudo
começa quando Judá, um dos filhos de Jacó se apartou dos seus irmãos e foi
viver na casa de Hira, o adulamita. Nessa terra, um lugar onde haviam várias
cavernas no território ao sudeste do que veio a ser a cidade de Jerusalém, ele
casou-se com a filha de um cananeu chamado Sua. Casualmente, a história não
menciona o nome de sua mulher cananéia. Desse casamento nasceram-lhe três
filhos. Er, Onã e Selá. No devido tempo Judá casa o seu filho primogênito. A
esposa escolhida para Er chamava-se Tamar.
Pouco
tempo depois desse casamento e antes mesmo de terem tido filhos Er veio a
falecer e Tamar se tornou viúva e sem filhos. Pela lei do levirato (ou dever de
cunhado) a mulher que ficasse viúva sem filhos deveria ser entregue ao irmão
mais velho, para que fosse completada a descendência do irmão falecido. Essa
lei também era chamada de a prática do
dever de cunhado.
Dessa
forma, Tamar foi entregue como esposa de Onã.
Porém,
por causa do orgulho em permitir que fosse dada a descendência ao seu irmão
falecido, Onã viveu com Tamar evitando ter filhos, deixando o sêmen cair na
terra sem que houvesse fecundação.
Passados
alguns anos Oná também veio a falecer e, mais uma vez, Tamar se tornou viúva
sem filhos. Pela mesma lei do levirato Tamar deveria ser entregue ao próximo
irmão vivo, chamado Selá.
Entretanto,
Judá não permitiu que assim acontecesse, pois considerou Tamar amaldiçoada pela
morte dos dois primeiros maridos. Com a desculpa que o filho Selá ainda era
novo para o casamento, Judá a enviou de volta a casa de seus pais.
Algum
tempo depois Judá viajou para Timma, para tosquiar ovelhas. Era uma época
festiva entre os cananeus, quando o desejo sexual estava maia aguçado pelo
culto cananeu que incentivava a fornicação ritual com magia da fertilidade.
Tamar foi ao encontro de Judá e preparou um estratagema, pois percebeu que Selá
já era homem e não lhe foi entregue como marido.
Tamar
se despiu das vestes da viuvez e usando um véu disfarçou-se de prostituta.
Muito provavelmente Tamar posou como prostituta cultual, talvez para ter
segurança dobrada em captar sua vítima. E dessa maneira Judá foi seduzido por
Tamar, sem saber que era sua nora.
Judá
ofereceu um cabrito do rebanho como pagamento pelo agrado sexual e Tamar pediu
como penhor o selo, o cordão e o cajado. Ele atendeu ao seu pedido e a possuiu;
e ela concebeu dele. No outro dia ele não mais a encontrou.
Passados
uns três meses descobriram que Tamar estava grávida e a consideraram adúltera.
Quando estavam para condená-la a morte por adultério ela anunciou que estava
grávida do dono daqueles objetos: o selo, o cordão e o cajado. Dessa forma,
Judá reconheceu que foi injusto com sua nora, não a tendo casado com seu filho
Selá.
Dessa
relação incestuosa nasceram-lhe gêmeos. Perez e Zera. O nascimento também foi
algo incomum. As crianças disputaram a progenitura antes de nascer, como
aconteceu com Esaú e Jacó. Zerá colocou seu braço para fora e nele foi amarrada
uma fita vermelha. Porém, Perez ainda nasceu primeiro e recebeu esse nome que
significa “aquele que rompe a saída”.
Assim,
Tamar conseguiu ter filhos. Salvou a sua honra e a sua vida. Tamar agiu com
astúcia e preservou sua vida e posteridade.
Certamente,
o escritor do evangelho de Mateus conhecia muito bem todos os detalhes humanos
e irregulares dessa história. Tamar não foi citada por acaso e sua história
continuava a falar séculos e séculos depois.
RAABE
A
segunda mulher citada na genealogia é Raabe. Esta história bíblica está
registrada no livro de Josué 2:1-24 e 6:22-27.
Raabe
era prostituta por profissão. Esta história relata a espionagem militar no momento da conquista da terra por Josué. O
povo de Israel tinha passado vários anos no deserto, porém agora sob a
liderança de Josué eles estavam batalhando para conquistar a terra de Canaã.
Depois de vencerem vários reis eles acamparam em Sitim, quando se preparavam
para invadir a cidade. Jericó era muito bem fortificada e protegida por altas
muralhas.
Para
tomar conhecimento da cidade e preparar a invasão Josué enviou secretamente
dois espiões a Jericó. Os espiões se hospedaram na casa de Raabe, a prostituta.
A história bíblica conta que chegou ao conhecimento do Rei da cidade que haviam
chegado alguns homens estranhos e suspeitos de serem enviados por Josué.
Raabe
enganou os soldados do Rei da cidade de Jericó dizendo que os espiões tinham
saído de sua casa, porém ela os havia escondido no telhado da casa. Depois ela
foi ter com os espiões e fez um pacto com eles.
Raabe
reconhece que havia um ambiente de temor em Jericó pela chegada do povo hebreu
e certamente não havia como escapar da invasão. Num ato de fé, ela reconheceu
que havia um poder especial na ação do Deus dos hebreus. Então, Raabe pediu que
fosse poupada, ela e toda a sua família. Sendo assim, ela os ajudaria e
protegeria. E assim foi feito.
Raabe
os ajudou fazendo-os descer por uma corda pela janela e no momento da invasão
da cidade a casa de Raabe deveria ser marcada com uma fita vermelha que
serviria como sinal.
O
assalto à cidade foi tremendo. Os soldados de Josué destruíram e saquearam
Jericó, e todos os seus habitantes foram mortos. Porém, Raabe salvou a sua vida
e a da sua família, como tinha combinado com os espiões.
A
vida de Raabe foi poupada e ela foi plenamente integrada na família dos
hebreus, mesmo sendo uma mulher estrangeira. Ela assumiu plenamente a sua fé no
Deus dos hebreus e habitou no meio de Israel integralmente. Ela se casou com
Salmon e foram os pais de Boaz.
Por
sua fé e coragem ela foi fundamental na conquista da terra de Canaã e mesmo
sendo uma mulher estrangeira e uma prostituta, foi reconhecidamente lembrada na
genealogia de Jesus.
RUTE
A
terceira mulher citada na genealogia é Rute. Esta história bíblica está
registrada no livro de Rute. A história de Rute contada no livro com seu nome é
uma verdadeira lição de fé, esperança e amor.
Nos
dias de grande fome na terra uma família de judeus foi morar nas terras de
Moabe. O homem chama-se Elimeleque e com ele foi sua mulher Noemi e seus dois
filhos, Malom e Quiliom. Passados alguns anos Elimeleque veio a falecer e mais
tarde seus dois filhos se casaram com duas mulheres moabitas. Uma chama-se Orfa
e a outra se chamava Rute.
Passados
dez anos morreram ambos os filhos, Malom e Quiliom, ficando assim a mulher
desamparada de seus dois filhos e de seu marido. Então Noemi se dispôs a
retornar para a terra de Israel, pois o tempo da fome já havia passado.
Quando
estavam de partida Noemi sugeriu a suas duas noras que voltassem para a casa de
seus pais. Orfa resolveu voltar, porém Rute se apegou a Noemi de tal maneira
que foi com a sogra, mesmo sabendo da falta de perspectiva para ela.
Elas
voltaram e foram morar em Belém no princípio da colheita das cevadas. Era uma
época de fartura. Por serem viúvas elas não tinham sustento e viviam com muita
dificuldade. Assim, Rute vai à lavoura para rebuscar as espigas que caíam dos
jacás dos catadores. A lei judaica permitia esse procedimento aos pobres,
estrangeiros, viúvas e órfãos. Rute era uma mulher de trabalho e muito se
sacrificava para ganhar o pão para sua casa e de sua sogra.
Por
acaso, ela foi rebuscar espigas na lavoura de Boaz, que era parente da família
de Elimeleque, o finado esposo de Noemi. Boaz conheceu a moabita Rute e se
admirou com sua tenacidade e fidelidade à sogra Noemi. Ele a agregou às outras
trabalhadoras, deu-lhe condição de trabalho e até a chamou para comer do pão
com ele.
Rute
ficou admirada com a bondade de Boaz e quis saber por que ele era tão generoso
com ela, sendo ela uma mulher estrangeira. Boaz respondeu lembrando da
experiência de Abraão dizendo que ela havia deixado pai e mãe, a terra onde
nascera e veio para um povo que nem conhecia. Boaz abençoou Rute rogando que
ela recebesse uma farta recompensa das mãos do Senhor, Deus de Israel, pois foi
debaixo das asas dele que ela veio buscar amparo. A história bíblica mostra o
desenvolvimento desse romance baseado na sinceridade, na esperança e na fé em
Deus.
Boaz
se sensibilizou pela situação de Rute e resolveu torna-se o resgatador da
família. O resgatador era uma possibilidade de restauração social prevista na
lei judaica. Era o ato de reaver legalmente os bens da família ou mesmo as
pessoas que fossem vendidas como escravas. Ou seja, se a família pobre
precisasse vender sua terra, o parente mais próximo era obrigado a resgatar a
terra, comprando-a de volta para o parente que a estava perdendo. Se o parente
não pudesse comprá-la de volta e a pessoa que vendeu se enriquecesse depois,
ele mesmo poderia comprar a terra pelo mesmo valor que a vendeu. Era um modo de
preservar a família e evitar o desequilíbrio social.
No
caso de Rute houve uma junção da lei do resgate com a lei do levirato ou o dever
de cunhado. Boaz casa-se com Rute para continuar a descendência da família,
perdida através da morte de Quiliom.
Dessa
maneira, Rute teve a sua vida restaurada e a esperança se concretizou na
restauração de sua família e a posteridade de sua casa. Ela encontrou
finalmente a felicidade, como prêmio do seu trabalho, de sua abnegação e
fidelidade. Mas, embora a sua moral fosse inatacável, tinha algo vergonhoso
para qualquer judeu: era estrangeira. Pior ainda, pertencia aos moabitas, um
dos povos mais odiados pelos judeus.
Do
casamento de Rute com Boaz nasceu Obede. A criança veio alegrar sobremaneira o
coração de Noemi. Obede foi o pai de Jesse, este foi o pai do rei Davi.
Rute,
essa mulher especial deixa sua marca de integridade na história dos judeus. Este
exemplo continua a falar continuamente. Esta moabita, que está presente na
linhagem do rei Davi, foi muio bem lembrada pelo escritor-evangelista na
genealogia de Jesus.
BATE-SEBA
A
quarta mulher citada na genealogia é Bate-Seba. Esta história bíblica está
registrada no livro de II Samuel 11.
Era
uma mulher hitita, esposa de Urias, oficial do rei Davi. Vivia com o seu esposo
em Jerusalém, perto do palácio do rei. Era muito bonita. Tão bonita, que o rei
Davi se encantou perdidamente por ela. Aproveitando o fato de Urias ter partido
para a guerra, o rei mandou chamá-la ao palácio, e se uniram amorosamente.
Ela,
então, ficou grávida. Para evitar o escândalo, Davi fez vir Urias da frente de
batalha e deu-lhe uns dias de férias em sua casa, a fim de que este convivesse
com sua mulher durante um tempo razoável e assim cobrisse as aparências.
Mas
Urias opôs-se a este privilégio, sabendo que os seus soldados estavam em plena
guerra. Então, o rei fez com que o mandassem novamente para o meio da luta, ele
retornou para a guerra levando uma carta para o comandante Joabe. Nessa carta
havia a sua própria sentença de morte. Urias foi colocado na frente da batalha,
na zona mais dura e de maior perigo. Deste modo, Urias morreu e Davi pôde ficar
com sua esposa Bate-Seba.
Algum
tempo depois, um profeta, mediante uma comovedora parábola, fez ver a Davi o
seu crime e o seu gravíssimo pecado. Davi, humildemente, reconheceu a sua
culpa, arrependeu-se e pediu perdão. O adultério cometido por Davi foi o
impulso para uma vida familiar totalmente tumultuada até o fim de seus dias.
O
primeiro filho de Davi com Bate-seba morreu ainda criança, Porém, outro filho
do casal, Salomão, foi o sucessor de Davi e teve muita prosperidade e sucesso
no seu reinado.
PRESENÇA FEMININA NA
GENEALOGIA
Certamente,
a presença feminina na genealogia de Jesus é um fato incomum. Nas demais
genealogias não se encontram nenhuma referência ao nome das mulheres. Sabe-se
que as genealogias tinham seu objetivo histórico e até mesmo teológico. Existem
algumas razões que podem ser analisadas, no caso da citação do nome de mulheres
na genealogia de Jesus pelo escritor-evangelista Mateus.
A ACUSAÇÃO DE QUE
JESUS NÃO ERA O MESSIAS, POR QUE SERIA FRUTO DE UMA UNIÃO ILEGÍTIMA.
A
primeira razão, aqui mencionada, que teria motivado o escritor-evangelista
Mateus a citar o nome de mulheres na genealogia de Jesus é que pesava sobre
Jesus uma séria acusação. Jesus não poderia ser o Messias, por que seria fruto
de uma união ilegítima. Ele era filho de um carpinteiro pobre com uma mulher
humilde, que carregava o estigma de alguém que tinha engravidado antes do
casamento.
Há
uma relação muito forte entre as mulheres citadas na genealogia com a
maneira pela qual se deu o nascimento de
Jesus. Tamar, Raabe, Rute, Bate-Seba tiveram um relacionamento fora dos padrões
morais regulares.
Esse
argumento concorda com a afirmação de Saldarini (2000: p.278): “A irregularidade
do nascimento de Jesus é preparada pela citação de quatro mulheres na
genealogia, todas irregulares de um jeito ou de outro”.
Nessa
mesma linha, está o argumento do professor André Chevitarese (2006), quando
escreve sobre o maior interesse das comunidades cristãs, a partir dos últimos
decênios do primeiro século em diante, pela família de Jesus de Nazaré. Para
defender seu ponto de vista, ele apresenta como um dos seus argumentos a
teoria, que pode ser assim resumida:
Há
dois indícios na literatura cristã que deixam transparecer que algumas
comunidades cristãs já conheciam a acusação formulada pelos seus opositores de
que Jesus não poderia ser o Messias, na medida que ele seria o resultado de uma
união ilegítima, sendo considerado filho da prostituição. Os responsáveis por
essa acusação estão do lado de fora dos portões das respectivas comunidades,
talvez ainda inseridos no judaísmo.
O
primeiro indício ocorre em um diálogo marcado pela tensão crescente entre Jesus
e um grupo de judeus. O seu ápice estaria contido na seguinte passagem do
Evangelho de João: “[Disse-lhes Jesus]: vós, porém, procurais matar-me, a mim,
que vos falei a verdade que ouvi de Deus. Isto, Abraão não o fez! Vós fazeis as
obras de vosso pai! Disseram-lhe, então: Não nascemos da prostituição, temos um
só pai: Deus” (João 8:40-41).
O
segundo indício está no capítulo primeiro do evangelho de Mateus. Verifica-se
ao longo da genealogia mateana a citação de cinco mulheres, dentre elas, Maria,
da qual nasceu Jesus chamado Cristo.
A
narrativa mateana não deixa dúvida: o elemento comum nas narrativas relativas
às vidas das cinco mulheres é a prostituição. Na sua genealogia, Mateus cita
cinco mulheres, das quais quatro trazem o estigma da prostituição. É pouco
provável que a quinta mulher, Maria, estivesse isenta da tal estigma.
O
professor André ainda cita mais três outros textos na literatura do século II,
que podem ser usados com referência à acusação da ilegitimidade física de
Jesus. O primeiro é o Proto-Evangelho de Tiago. Esse texto deixa claro
que algumas comunidades cristãs estavam preparando um material com finalidade
de defender a honra de Maria, particularmente no que se refere à sua concepção
e ao seu parto virginal. O segundo é o Verdadeiro Discurso, de Celso
(datado de 178 D.C.) citado parcialmente na obra de Orígenes, Contra Celso
(de 248 D.C.). Nesse texto há o registro de acusações de Celso contra o
nascimento ilegítimo de Jesus. O terceiro é Os espetáculos de Tertuliano.
É um texto produzido por um cristão do norte da África, em 197 D.C., que
recupera a acusação, que ele considera caluniosa, de que Jesus seria filho de
uma prostituta.
ROMPIMENTO COM O
JUDAÍSMO E A MISSÃO AOS GENTIOS.
Uma
outra razão que teria motivado o escritor-evangelista Mateus a citar o nome de
mulheres estrangeiras na genealogia de Jesus é que essa citação sinalizaria um
princípio de rompimento com o judaísmo e a abertura da missão do messias aos
gentios. Tamar foi casada com o filho de Judá quando ele estava distante de sua
família, morando com um Adulamita nas terras cananéias. Rute era moabita. Raabe
morava em Jericó, cidade destruída por Josué.
Historicamente
há um fator que precisa ser observado. O contexto do evangelho de Mateus tem
uma profunda ligação com o período pós revolta judaica dos anos 66-73 d.C.
Donald Senior (1987) desenvolve muito bem esse argumento, que pode ser assim
resumido:
Para
o judaísmo, a experiência arrasadora da revolta, incluindo a destruição de
Jerusalém e do templo no ano 70 d. C., significou mudança radical na textura de
sua vida religiosa. A variedade, que caracterizou o judaísmo pré-70, precisava
abrir caminho para uma expressão mais homogeneizada a fim de sobreviver. Os
fariseus eram os únicos com suficiente força moral e astúcia para coordenar a
sobrevivência judaica. Sob sua liderança, centralizada em Jâmnia, os fariseus
construíram o judaísmo na base de estreita fidelidade à lei, enquanto
interpretada pelos fariseus.
Esta
consolidação de pós-70 significava menos tolerância para grupos marginais do
que no período antes da revolução. Movimentos apocalípticos e cristãos eram
vistos como enfraquecimento da ortodoxia judaica e, conseqüentemente, como
ameaça à sobrevivência. Como resultado,
tais grupos foram expulsos das sinagogas durante o último trimestre do século I
e os relacionamentos entre a Igreja e a Sinagoga se tornaram cada vez mais
antagônicos.
Dessa
forma, visto que a identidade de Jesus e as implicações de sua mensagem eram os
pontos básicos de tensão entre a Sinagoga e a Igreja e o catalizador definitivo
no tocante ao deslocamento da igreja em direção aos gentios, não surpreende que
a perspectiva de Mateus seja radicalmente cristológica. Jesus não é somente o
proeminente filho de Israel, mas o inaugurador de uma nova época de salvação
que se estende a todos os povos.
Os
suportes básicos para a perspectiva da missão aos gentios encontram-se em todo
o evangelho de Mateus. Assim como pode-se ver no capítulo final, que mostra o
estilo de atividade missionária da comunidade de Mateus.
“E,
aproximando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu
e na terra. Portanto, ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a observar todas as
coisas que eu vos tenho ordenado; e eis que eu estou convosco todos os dias,
até à consumação dos séculos” (Mateus 28:18-20).
IMPORTÂNCIA DA
PRESENÇA FEMININA NO MOVIMENTO DE JESUS.
A
terceira razão que teria motivado o escritor-evangelista Mateus a citar o nome
de mulheres na genealogia de Jesus é que esse fato já é uma evidência da
importância da presença feminina no movimento de Jesus.
É
impressionante como a literatura canônica e não canônica revela uma presença
feminina marcante. As mulheres na genealogia são apenas um sinal dessa presença
feminina que viria posteriormente. É muito forte a lembrança e o registro de
vários nomes: Marta e Maria, amigas de Jesus; Maria Madalena, apóstola da
ressurreição e as mulheres anônimas que deixaram sua marca: a mulher
Siro-fenícia, a mulher de Samaria, a mulher impura que “roubou” um milagre de
Jesus. O movimento de Jesus foi absolutamente revolucionário nesse aspecto da
valorização da mulher como ser humano.
Uma
das características do movimento de Jesus na Galiléia foi a pregação da
igualdade. Jesus pregou a igualdade em todos os sentidos. No movimento de Jesus
não há preferência ao homem ou à mulher, mas há uma valorização de ambos. Assim
como aconteceu com os pobres, esse nivelamento já colocou a mulher em um lugar
muito além de sua realidade para a época.
Dessa
forma, pode-se afirmar que a mulher teve um lugar preponderante no ministério
de Jesus. O que se pode comprovar no texto de Lucas 8:1-3, onde se lê que
várias mulheres participavam ativamente do movimento de Jesus, inclusive
prestando assistência com seus bens.
Concordando
com esse raciocínio, Elza Tamez no seu livro As mulheres no movimento
de Jesus afirma: “As mulheres seguidoras
de Jesus nos mostram duas coisas importantes: primeiro, Jesus sentiu uma
inclinação especial pelos setores marginalizados, como os das mulheres, dos
pobres e de todos os que sofrem discriminação; segundo, as mulheres encontraram
no movimento de Jesus a esperança de que as coisas poderiam mudar, pois elas
sempre haviam sido deixadas de lado”.
Pode-se
também confirmar essa idéia da valorização da mulher, de forma clara, no
evangelho de João. Afirmam alguns que essa visão poderia ser uma resposta ao
pensamento das cartas pastorais, que já pretendiam calar as mulheres, num
momento que a Igreja se aproximava da possibilidade de receber o apoio do império
romano.
Em
João 2:5 percebe-se uma mulher (Maria, mãe de Jesus) dando ordens aos serventes
(diáconos). João 4 registra um diálogo de Jesus com a mulher samaritana, que
reconhece a messianidade de Jesus. Em João 11:27 Marta faz uma importante
confissão: “Tu és o Cristo, Filho de Deus”. Em João 12:1-8 Jesus é ungido por
Maria (irmã de Marta), o que demonstra a beleza e a profundidade da
sensibilidade feminina, que já havia percebido, antes de todos, a morte de
Jesus. Somente ela percebeu a necessidade de uma preparação especial do corpo
de Jesus. Os discípulos não entenderam o que Maria fez e a criticaram,
porém foram exortados por Jesus.
Na
crucificação, o evangelho de João relata a presença das mulheres aos pés da
cruz (João 19:25-17) e, finalmente em João 20:1-18 pode-se ver com clareza que
Jesus aparece primeiro às mulheres (Mateus 28:1-10, Marcos 16:1-11 e
Lucas 24:1-12). e as envia (apóstolas) para que anunciem aos discípulos as boas novas
da ressurreição, fato que o apóstolo Paulo não menciona em I Cor. 15:1-8.
O
movimento de Jesus é totalmente igualitário, as mulheres só foram sendo
excluídas à medida que a igreja se aproximava do estado romano com sua conduta
totalmente patriarcal.
____________________________________
Resumo do Trabalho de conclusão do Curso de pós-graduação em História do Cristianismo Antigo apresentado na Universidade de Brasília.